"O sertanejo do Norte
vamos plantar algodão
Ouro Branco que faz nosso povo feliz
Que tanto enriquece o país
Um produto do nosso sertão."
ALGODÃO
Luís Gonzaga
1953
Contato de primeiro grau com memórias afetivas.
Estabelecer elos por meio das nossas memórias afetivas, significa imergir num vácuo que se acumulou através dos tempos, é uma faca de dois gumes, onde é possivel exercer fortes referências ou forjar situações que foram dimensionadas no momento em que as vivenciamos. Entretanto, prefiro ficar com as que me estimularam seguir adiante! Sem filtros, cada vez mais este sentimento vem à tona, de forma que sinto vibrações que em nenhum momento da minha vida estiveram tão presentes quanto agora.
Itaporanga, PB, Alto Sertão, meados dos anos 60.
A sensibilidade diante do mundo já se configurava... Tertú, minha avó paterna, era uma costureira talentosa, reconhecida por todos da cidade. Através de seus dotes artísticos criativos, ela simplesmente: desenhava, modelava, cortava e costurava as peças em "fazendas" tais como o algodão e linho, em abundância naquela época. Os vestidos que elaborava exclusivos para as clientes do povoado eram muitos elogiados, e hoje tranquilamente poderíamos desiguina-la de estilista. Seu talento era nato, quase um dom divino, totalmente autodidata, desenhava seus próprios modelos e criava estilo, já que naquele tempo não tinha acesso à referências importadas , e principalmente, a internet para facilitar a difusão das cópias. Com dicas preciosas de estilo, suas modelagens se encaixavam perfeitamente com as medidas das clientes, era ágil na costura e nos acabamentos, e ainda era acionada pelos alfaiates locais a apoiar na produção das demandas crescentes em momentos de pique. Seu ritmo era constante, cuja jornada de trabalho de 12h corridas, fazia dela a típica mulher sertaneja. No contraponto, minha bisavó ,também paterna - Mãe Dodó - nascida e criada na zona rural, em contato constante com a cultura algodoeira (a Paraíba em plena produção crescente do cultivo , chegou a uma produção recorde, ) e não deu outra: adquiriu habilidades artesanais, e como era de praxe as mulheres ficarem entre as atividades domésticas e artesanais, era Rendeira de Bilro. No fuso que fazia com muito esmero, do algodão colhido no quintal, fiava e tramava as rendas, pavios de candeeiros a gás, confecção de redes de dormir, cem por cento artesanal, hoje um produto de luxo. Estes dois equipamentos, fusu + máquina de costura, foi o que dimensionou o sustento da família. Fortes histórias estão impregnadas através do contato contínuo das mãos dessas mulheres de "pulso firme", de grande fibra, prumos bem definidos e fibra digna. Em tempo, meu pai ainda foi ajudante de alfaiate na confecção de camisas. Até os dias de hoje, a máquina de costura se encontra na casa do meus pais, objeto de museu com direito a redoma e local especial na sala de estar e aberta à visitação. Trata-se de um reconhecimento de uma memória de vida viva, bem como de um instrumento que serviu de base para subsistência de uma família nordestina.
João Pessoa, Pb, bairro Jaguaribe, manhã de sábado início dos anos 70.
Chegado o dia de vivenciar uma experiência fantástica, adentrar em um universo novo para mim: meu pai estaciona em frente a uma fachada de um casarão dos anos 40. Surpreso, e envergonhado, recebido por uma senhora que acredito ser a empregada, entrei pelo jardim. O perfume era impressionante, cheiro de flores e frutos invadiram sem pedir licença os meus sentidos olfativos! A figueira destacava-se pelo aroma... impactante seu cheiro que ecoa até hoje... sou recebido por dona Lourdinha, minha primeira professora de artes, e por vários gatos que me acompanharam pelo trajeto aos fundos da casa onde estava instalado o atelier. Como foi perfeito; identificação de imediato; estava no meu habitat e uma luz invadia o espaço; era mágico! Paredes tomadas por quadros, paisagens na sua totalidade, cavaletes, mesas, estantes e tamboretes. A madeira dava o tom orgânico na composição do espaço, os pincéis e as tintas estavam em um local estratégico, me deparei com um mundo novo, porém familiar. Na primeira aula com o caderno de desenho, lápis grafite e lápis de cor, desenhei uma paisagem praiana e na aula seguinte já passei para a tela. Parece que não precisava mais do papel como base, sou muito agradecido a Otali , amiga de minha mãe, que me estimulou a me introduzir neste mundo fantástico.
João Pessoa, Pb, bairro Expedicionários, tardes no anos 70.
A timidez fazia parte do meu mundo e nada como as memórias para alimentar o meu convívio sistemático com formas, cores, texturas, movimento. Tudo era redimensionar.
A moda surge como um novo ciclo de experimentos. A chegada de Tia Maria, tia do meu pai, que mora no sertão, em uma fazenda nos arredores da cidade de Piancó Pb, mudava um pouco a minha rotina, pois ela ficava horas fazendo as novas roupas das bonecas de minhas irmãs. Eram utilizados retalhos para a construção das roupas com suporte da máquina de costura. Lembram de Tertú ? A mesma. Atento aos movimentos do cortar e costurar, fui experimentando o ofício. Riscar e cortar o tecido em formas de pétalas também era um exercício, minha mãe Saletinha, tinha também habilidades de artesã, confeccionava flores, que transformava em broches ou arranjos de mesa. Ali estava sendo alimentado o qual me levaria à experiências imaginarias sem precedentes.
Porém, o mais emblemático da vivência com minha mãe, não era o fato de eu vestir as roupas dela como acontece corriqueiramente com crianças nessa fase, descobrindo sua sexualidade. Saletinha era a minha modelo. Aproveitava que estava dormindo, abria o seu guarda roupas e começava a produção dos looks: vestidos; calças; blusas; lenços; colares; brincos; perucas (eram os anos 70' !). A produção era completa com direito a maquiagens bem definidas. Foram várias e várias tardes testando essas experiências lúdicas e extremamente criadoras, onde no meu mundo particular acreditava que ela estava dormindo...
Reconectando memórias.
Corpos sedentos por novos modelos integrando o ser e os sentimentos, não bastam. As experiências induzem aos estímulos criativos a necessidade de inovar. Como feixe de luz em várias direções, o indivíduo pleno diante de saciar o que já poderia estar saciado, porém, deseja muito mais.
O fazer das técnicas artesanais tradicionais envolve um processo de manifestações afetivas absorvidas, no qual o processo criativo necessita ser renovado. Os atores são variados e necessários para estabelecer uma comunicação plural. A tecnologia utilizada como suporte no desejo de reforçar ainda mais a atmosfera que circunda, transforma um ambiente árido, em pulsante e de múltiplos estímulos.
Espaços multi facetados, múltiplas sensações, memórias recicladas, estímulos sensoriais, intersetorialidade aguçada, sobreposições criativas, mãos e massa, pulsações amplificadas. É o artesanal associado literalmente à moda, evidenciando ligações tradicionais, e o desejo de fundir cada vez mais em função da contemporaneidade.